RESILIÊNCIA E MISSÃO
“Apeguemo-nos com firmeza à
esperança que professamos, pois Aquele que prometeu é fiel.” Hb 10:23
Nos dias atuais, diante do
impressionante movimento que
o mundo faz promovendo mudanças velozes em todos os campos da vida humana e do
planeta, preservar um ritmo saudável e um funcionamento emocional adequado tem
se tornado um grande desafio para todos nós seres viventes.
O virtual invade nossa casa e nos
obriga a perder de vista as linhas divisórias entre o trabalho e o descanso, o
privado e o público, a família e o mundo. Como imagem e semelhança de Deus, O
homem não herdou a capacidade de ser onisciente, contudo, é obrigado a estar “a
par” de quase tudo que ocorre no mundo, incluindo as tragédias, e o faz em
questão de segundos. Tamanho volume de informações que gera emoções das mais diversas,
não encontra tempo para ser processado internamente como deveria ser.
E o que dizer de nossas
catástrofes pessoais? “Que Deus nos livre!”, afirmamos imediatamente num raio
de pensamento supersticioso. Mas a realidade é que além de todo cenário global
que faz o nosso cotidiano nesse mundo do século XXI ser mais difícil, temos que
enfrentar as nossas próprias perdas, assombros e lutas internas. Enquanto nos
envolvemos com a Missão e caminhamos na direção proposta pelo Mestre, não
estamos livres de sofrer grandes decepções, mortes, quebras de relacionamentos
importantes, solidão, rejeição e desprezo, lutos profundos, doenças que nos
limitam e assustam.
Como Cuidadora de Trabalhadores da Seara e na profissão de
psicóloga, tenho tido a oportunidade de ver com meus próprios olhos flores
brotar em terrenos completamente desolados e secos do coração humano. Como num
milagre da fé, de onde não se esperaria nada mais, surge algo novo. É
impressionante! Mas, também tenho tido a triste experiência de presenciar o
contrário. Onde as iniciativas de apoio e as oportunidades são abundantes,
contudo o solo da alma não se revigora e não faz reflorescer.
Como uma interminável aluna na
escola da vida, sou a primeira a levantar o dedo e perguntar: O que leva seres
humanos a superar os piores traumas, enquanto outros sucumbem aos mesmos?
Essa é uma pergunta disparadora
que tem impulsionado por décadas pesquisadores da área das Ciências Humanas à
investigação, em busca de respostas para o que passou a chamar-se de
“Resiliência Humana”. Voltaremos a esse tópico mais a frente.
Antes, deixe-me ilustrar o
assunto com uma história, que consta do meu catálogo de atendimentos aos amados
trabalhadores. O nome da pessoa é fictício, mas a história é totalmente
verídica. Com sua permissão:
Eram
5hs da manhã quando o telefone tocou. Isabel, uma mulher de meia idade,
levanta-se da cama e corre pra atender a ligação. Do outro lado alguém explica:
“Isabel, mantenha a calma, mas nessa madrugada o ônibus em que seu esposo
viajava sofreu um grave acidente, e há muitos feridos que já foram conduzidos
ao hospital mais próximo...”. Pausa!
Como uma tempestade abrupta que
nos pega de surpresa e inunda tudo em nossa volta, acontecimentos como esse
adentram em nossa vida, sem pedir licença e nos impele para uma pausa forçada, que não gostaríamos de
fazer.
Isabel
e seu esposo atenderam ao chamado quando seus dois filhos eram pré-adolescentes.
Em dois anos estavam todos no campo. Era uma família de modelo patriarcal. O pai,
embora fosse um homem doce, representava o centro das decisões e iniciativas
principais que envolviam a família. Submissão e companheirismo marcaram o
relacionamento de Isabel com o seu esposo durante os 27 anos de casados.
Mas foi
inevitável, a morte chegou a sua casa. Era uma viagem missionária, ele e outros
irmãos em Cristo se foram para sempre. Alguns dos que sobreviveram ficaram
traumatizados. Recentemente pude atender um deles que ainda carregava marcas
dessa tragédia, mas com a graça do Pai já está no campo.
Meu
encontro com Isabel se deu em dois momentos: No primeiro eu era uma palestrante
falando em um retiro para trabalhadores do Reino. O seu esposo ainda estava lá.
Lembro-me quando se aproximaram de mim risonhos, e ele mantinha o seu braço
sobre os ombros dela. Isso foi há pouco mais de três anos. Eles estavam de
férias no Brasil. Meses depois recebi a triste notícia do seu falecimento. Sem
saber ao certo dos caminhos que Deus traçaria no futuro, tivemos o nosso
segundo encontro em 2011, quando comecei o acompanhamento pré-campo de Isabel,
que faz parte de uma das agências que assessoro na área do Cuidado. Isso mesmo,
ela está voltando para o campo. Desta vez sozinha. Pela primeira vez estará sem
os filhos, agora casados, e sem o seu companheiro.
Tenho refletido muito sobre os
aspectos da vida desta mulher. O que faz do seu caminho uma jornada tão
notável, frutífera e esperançosa, apesar da catástrofe? Ela é uma pessoa comum,
tem fragilidades físicas que exige cuidado e tratamento. Tem limitações
financeiras como a maioria dos trabalhadores brasileiros e tem sofrido em seu
corpo as turbulências dos dias difíceis, como todos nós.
Tenho que admitir, ela fez da Pausa um momento de aprofundamento da
sua fé no Senhor, e no meio dessa terrível tempestade, não se deixou submergir,
mas caminhou sobre as promessas de Deus contidas em Sua Palavra.
“Por isso
não abram mão da confiança que vocês têm; ela será ricamente recompensada.
Vocês precisam perseverar, de modo que, quando tiverem feito a vontade de Deus,
recebam o que Ele prometeu.” Hb 10:36,37
Os
últimos três anos foram para Isabel, de muita luta, negritude, medos e superações.
Em pleno luto, Isabel resolveu ser útil mais uma vez. Inscreveu-se num curso
técnico de enfermagem, iniciou um trabalho voluntário na base de sua agência, apoiou
e casou os dois filhos, com árduo custo, editou e lançou o livro-biografia que
seu esposo havia escrito antes de morrer. E não parou por aí. Nos meses
imediatos ao acidente, cumpriu toda a agenda de compromissos e pregações que
seu esposo tinha com as igrejas mantenedoras. Ufa!
Enquanto escrevo isso, tendo a
pensar naqueles heróis da fé que temos nas Escrituras, imaginando-os como seres
sobrenaturais. Mas eu sei que, assim como eles, ela é apenas uma mulher cheia
de graça. Pois como filha, “aprendeu a obedecer por meio daquilo que sofreu”, e
foi aperfeiçoada. (Hb 5:8)
Voltemos, então, ao conceito de
Resiliência, que é a chave para entendermos melhor como isso se processa.
O trabalho de Cuidado inclui o "objetivo de desenvolver no missionário a capacidade de
ser resiliente e piedoso perante os desafios encontrados ao longo de sua
carreira e vida. O ser capaz de lidar equilibradamente com o real sofrimento e
sacrifício contidos no seu chamado, e, do outro lado, lidar com a real
necessidade de suporte em suas vidas". (O´DONNEL & PRINS, 2006).
Aqui estão reunidos pontos
importantes que juntos podem indicar um caminho de sucesso na Missão:
(1)
Desenvolver Resiliência;
(2) Ser Piedoso;
(3) Ter
consciência do sacrifício contido na missão e, ao mesmo tempo, estar ciente da
necessidade pessoal de suporte.
Por hora nos deteremos neste
primeiro tópico, apenas. O conceito de Resiliência atualmente permeia diversas
áreas da ciência, mas surgiu originalmente no campo da física e da Engenharia
no século XIX. Indica a capacidade dos materiais resistirem aos choques, de
suportar as pressões ambientais e ainda poder voltar a sua forma original.
No campo da Psicologia o termo
foi aplicado inicialmente em meados da década de sessenta, século passado,
introduzindo os estudos sobre a capacidade humana de produzir biológica e
psicologicamente forças para superar as adversidades e mudanças na vida. Os
elementos que induzem à capacidade do homem se adaptar as situações difíceis e
ultrapassá-las começaram a ser foco de muitas pesquisas.
Para entendermos melhor o
conceito e não cair em reducionismos na tentativa de explicar brevemente o
assunto, teremos que considerar que há uma multiplicidade de fatores e
variáveis que envolvem o fenômeno da resiliência no ser humano. Nesse campo nada
é tão taxativo e padronizado, o próprio conceito induz a idéia de flexibilidade
do sujeito ou da matéria frente à pressão sofrida pelo meio.
Colocando o foco sobre o universo
missionário, temos em voga uma discussão de alta importância, tendo em vista
que o próprio estilo de vida daqueles que são chamados para esta tarefa, já
reúne desafios como: instabilidades diversas, perigos de perseguição, doenças e
de morte, preconceitos religiosos e raciais, distanciamento geográfico da
família e amigos, privações, entre outros elementos.
Vamos, então, refletir sobre o
assunto a partir desses cinco pontos:
O que não é Resiliência?
- Resiliência
não é um atributo fixo e inerente ao ser humano, que a
despeito de qualquer coisa funciona como um gatilho pronto a ser disparado
diante de adversidades que se apresentem. Se assim interpretarmos, quando
esse gatilho não disparar, passaremos a deduzir: esta pessoa não nasceu
para ser resiliente, é frágil, ”tadinha”. Também não está ligado ou
dependente do temperamento humano. A verdade é que haverá sempre uma
variação na resposta que o indivíduo é capaz de fornecer, que depende de
muitas variáveis internas e externas, tais como, o ambiente, a
circunstância, o meio social, e principalmente, o modo como o sujeito se
relaciona com tudo isso.
- Resiliência
é diferente de Invunerabilidade. Enquanto a primeira se aplica a um fenômeno
dinâmico, a segunda reflete a idéia rígida de invencibilidade, como se o
humano pudesse ser inatingível. A habilidade de superar crises não implica
em inatingibilidade. Depois de enfrentar grandes mudanças, adversidades ou
tragédias, as dores e a marcas na alma são inevitáveis. Não há como sair
intacto dessa vida. Somos seres vulneráveis e totalmente afetáveis. Mas
mesmo assim, podemos ser resilientes.
O que é Resiliência, então?
- Resiliência
diz respeito ao modo como me relaciono com as pessoas. Em
situações em que nos vemos no nosso limite, reconhecer que os outros podem
ser fontes de apoio e segurança pode contribuir no desenvolvimento de um
ser resiliente. Não se é resiliente sozinho. Porém, buscar apoio no outro
não significa lançar sobre ele(a) uma responsabilidade que é totalmente
minha, de enfrentar as adversidades e superá-las. Os outros podem servir
como apoio, mas não são responsáveis diretos pela nossa infelicidade e não
deveriam ser culpabilizados por isso. Enxergar as pessoas como bênçãos ao meu favor e não ao meu serviço, faz muita
diferença.
- Resiliência
tem a ver com o modo como interpreto a vida. Um modo
não realístico ignora ou supervaloriza os acontecimentos. Olhar a vida de frente significa
interpretar os acontecimentos dentro das dimensões em que se apresentam. Outro
erro é encarar a vida de um modo negativista. Isto impede a criatividade
de fluir naturalmente, fecha as portas da superação e veda os olhos para a
luz no fim do túnel. Então, ser realístico, criativo e positivo pode abrir
possibilidades para atitudes de resiliência.
- Finalmente, Resiliência está ligada ao modo como vivencio a temporalidade da
vida: Passado, Presente e Futuro. Algumas pessoas ancoram no passado e colecionam
tragédias, para terem o que contar. Então, sentar perto de alguém assim
pode ser um convite para ouvir quão sofrida e traumatizada é essa pobre
criatura. Normalmente saímos desse tipo de encontro cheios de pena ou
cheios de raiva por ver alguém imbuído de autocomiseração e autocentrismo.
Sim, de fato a vida é uma coletânea de acontecimentos bons e ruins. Se a
tendência for de eternizar os acontecimentos ruins ou mesmo os bons que
aconteceram no passado, corremos o risco de estar vivendo defeituosamente
o presente e produzindo um futuro sem grandes mudanças e expectativas de
crescimento. Se eu desejo mais a memória da tragédia do que a
possibilidade da superação, para atrair a comoção do mundo, não há chance
para um caráter resiliente, nesse caso.
Podemos, enfim,
dizer que resiliência é um fenômeno dinâmico
que pode ser desenvolvido e implica numa relação afetiva, social e cultural do
homem com o mundo. É também uma
construção que continuamente se dá
através do aprendizado formal e informal durante toda a vida do sujeito. Você
pode ser Resiliente no desempenho da Missão!
(...)
A resiliência é a arte de navegar nas torrentes.
Um trauma empurrou um sujeito em uma direção que ele gostaria de não
tomar. Mas,
uma vez que caiu numa correnteza que o faz rolar e o carrega para uma cascata
de ferimentos,
o resiliente deve apelar aos recursos internos impregnados em sua
memória,
deve brigar para não se deixar
arrastar pela inclinação natural dos traumatismos que o fazem navegar aos trambolhões,
de golpe em golpe, até o momento em que uma mão estendida lhe ofereça um
recurso externo,
uma relação afetiva, (...) que lhe permita a superação.
(Cyrulnik, 2004,p. 207)
Bibliografia Consultada:
Cyrulnik, B. Os patinhos feios.
São Paulo: Martins Fontes, 2004.
O`Donnell, Kelly. Cuidado Integral do Missionário:
Perspectivas e práticas ao redor do mundo. Londrina: Descoberta, 2004.
O´Donnell, Kelly and
Prins, Marina. Global Member Care
Resources (MemCa): Member Care Flows – Africa. Nairobi, Kenya: Mission Comission, World
Evangelical Alliance, 2006.
SEQUEIRA,
Vânia Conselheiro. Resiliência e abrigos.
Bol. - Acad. Paul. Psicologia, São Paulo, v. 29, n. 1, jun. 2009.
YUNES, Maria
Ângela Mattar. Psicologia Positiva e Resiliência: O foco no indivíduo e
na família. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 8, num. esp., p. 75-84, 2003
WALSH, F. Strengthening family resilience.
New York; London: The Guilford Press, 1998.
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