Hora de Refletir. Num.01/2012




RESILIÊNCIA E MISSÃO


“Apeguemo-nos com firmeza à esperança que professamos, pois Aquele que prometeu é fiel.” Hb 10:23




Nos dias atuais, diante do impressionante movimento que o mundo faz promovendo mudanças velozes em todos os campos da vida humana e do planeta, preservar um ritmo saudável e um funcionamento emocional adequado tem se tornado um grande desafio para todos nós seres viventes.
O virtual invade nossa casa e nos obriga a perder de vista as linhas divisórias entre o trabalho e o descanso, o privado e o público, a família e o mundo. Como imagem e semelhança de Deus, O homem não herdou a capacidade de ser onisciente, contudo, é obrigado a estar “a par” de quase tudo que ocorre no mundo, incluindo as tragédias, e o faz em questão de segundos. Tamanho volume de informações que gera emoções das mais diversas, não encontra tempo para ser processado internamente como deveria ser.

E o que dizer de nossas catástrofes pessoais? “Que Deus nos livre!”, afirmamos imediatamente num raio de pensamento supersticioso. Mas a realidade é que além de todo cenário global que faz o nosso cotidiano nesse mundo do século XXI ser mais difícil, temos que enfrentar as nossas próprias perdas, assombros e lutas internas. Enquanto nos envolvemos com a Missão e caminhamos na direção proposta pelo Mestre, não estamos livres de sofrer grandes decepções, mortes, quebras de relacionamentos importantes, solidão, rejeição e desprezo, lutos profundos, doenças que nos limitam e assustam.

Como Cuidadora de Trabalhadores da Seara e na profissão de psicóloga, tenho tido a oportunidade de ver com meus próprios olhos flores brotar em terrenos completamente desolados e secos do coração humano. Como num milagre da fé, de onde não se esperaria nada mais, surge algo novo. É impressionante! Mas, também tenho tido a triste experiência de presenciar o contrário. Onde as iniciativas de apoio e as oportunidades são abundantes, contudo o solo da alma não se revigora e não faz reflorescer.

Como uma interminável aluna na escola da vida, sou a primeira a levantar o dedo e perguntar: O que leva seres humanos a superar os piores traumas, enquanto outros sucumbem aos mesmos?
Essa é uma pergunta disparadora que tem impulsionado por décadas pesquisadores da área das Ciências Humanas à investigação, em busca de respostas para o que passou a chamar-se de “Resiliência Humana”. Voltaremos a esse tópico mais a frente.
Antes, deixe-me ilustrar o assunto com uma história, que consta do meu catálogo de atendimentos aos amados trabalhadores. O nome da pessoa é fictício, mas a história é totalmente verídica. Com sua permissão:

Eram 5hs da manhã quando o telefone tocou. Isabel, uma mulher de meia idade, levanta-se da cama e corre pra atender a ligação. Do outro lado alguém explica: “Isabel, mantenha a calma, mas nessa madrugada o ônibus em que seu esposo viajava sofreu um grave acidente, e há muitos feridos que já foram conduzidos ao hospital mais próximo...”.  Pausa!

Como uma tempestade abrupta que nos pega de surpresa e inunda tudo em nossa volta, acontecimentos como esse adentram em nossa vida, sem pedir licença e nos impele para uma pausa forçada, que não gostaríamos de fazer.

Isabel e seu esposo atenderam ao chamado quando seus dois filhos eram pré-adolescentes. Em dois anos estavam todos no campo. Era uma família de modelo patriarcal. O pai, embora fosse um homem doce, representava o centro das decisões e iniciativas principais que envolviam a família. Submissão e companheirismo marcaram o relacionamento de Isabel com o seu esposo durante os 27 anos de casados.

Mas foi inevitável, a morte chegou a sua casa. Era uma viagem missionária, ele e outros irmãos em Cristo se foram para sempre. Alguns dos que sobreviveram ficaram traumatizados. Recentemente pude atender um deles que ainda carregava marcas dessa tragédia, mas com a graça do Pai já está no campo.

Meu encontro com Isabel se deu em dois momentos: No primeiro eu era uma palestrante falando em um retiro para trabalhadores do Reino. O seu esposo ainda estava lá. Lembro-me quando se aproximaram de mim risonhos, e ele mantinha o seu braço sobre os ombros dela. Isso foi há pouco mais de três anos. Eles estavam de férias no Brasil. Meses depois recebi a triste notícia do seu falecimento. Sem saber ao certo dos caminhos que Deus traçaria no futuro, tivemos o nosso segundo encontro em 2011, quando comecei o acompanhamento pré-campo de Isabel, que faz parte de uma das agências que assessoro na área do Cuidado. Isso mesmo, ela está voltando para o campo. Desta vez sozinha. Pela primeira vez estará sem os filhos, agora casados, e sem o seu companheiro.

Tenho refletido muito sobre os aspectos da vida desta mulher. O que faz do seu caminho uma jornada tão notável, frutífera e esperançosa, apesar da catástrofe? Ela é uma pessoa comum, tem fragilidades físicas que exige cuidado e tratamento. Tem limitações financeiras como a maioria dos trabalhadores brasileiros e tem sofrido em seu corpo as turbulências dos dias difíceis, como todos nós.
Tenho que admitir, ela fez da Pausa um momento de aprofundamento da sua fé no Senhor, e no meio dessa terrível tempestade, não se deixou submergir, mas caminhou sobre as promessas de Deus contidas em Sua Palavra.  
“Por isso não abram mão da confiança que vocês têm; ela será ricamente recompensada. Vocês precisam perseverar, de modo que, quando tiverem feito a vontade de Deus, recebam o que Ele prometeu.” Hb 10:36,37

Os últimos três anos foram para Isabel, de muita luta, negritude, medos e superações. Em pleno luto, Isabel resolveu ser útil mais uma vez. Inscreveu-se num curso técnico de enfermagem, iniciou um trabalho voluntário na base de sua agência, apoiou e casou os dois filhos, com árduo custo, editou e lançou o livro-biografia que seu esposo havia escrito antes de morrer. E não parou por aí. Nos meses imediatos ao acidente, cumpriu toda a agenda de compromissos e pregações que seu esposo tinha com as igrejas mantenedoras. Ufa!

Enquanto escrevo isso, tendo a pensar naqueles heróis da fé que temos nas Escrituras, imaginando-os como seres sobrenaturais. Mas eu sei que, assim como eles, ela é apenas uma mulher cheia de graça. Pois como filha, “aprendeu a obedecer por meio daquilo que sofreu”, e foi aperfeiçoada. (Hb 5:8)
Voltemos, então, ao conceito de Resiliência, que é a chave para entendermos melhor como isso se processa.

O trabalho de Cuidado inclui o "objetivo de desenvolver no missionário a capacidade de ser resiliente e piedoso perante os desafios encontrados ao longo de sua carreira e vida. O ser capaz de lidar equilibradamente com o real sofrimento e sacrifício contidos no seu chamado, e, do outro lado, lidar com a real necessidade de suporte em suas vidas". (O´DONNEL & PRINS, 2006).

Aqui estão reunidos pontos importantes que juntos podem indicar um caminho de sucesso na Missão:
(1)    Desenvolver Resiliência; 
(2) Ser Piedoso; 
(3) Ter consciência do sacrifício contido na missão e, ao mesmo tempo, estar ciente da necessidade pessoal de suporte.

Por hora nos deteremos neste primeiro tópico, apenas. O conceito de Resiliência atualmente permeia diversas áreas da ciência, mas surgiu originalmente no campo da física e da Engenharia no século XIX. Indica a capacidade dos materiais resistirem aos choques, de suportar as pressões ambientais e ainda poder voltar a sua forma original.

No campo da Psicologia o termo foi aplicado inicialmente em meados da década de sessenta, século passado, introduzindo os estudos sobre a capacidade humana de produzir biológica e psicologicamente forças para superar as adversidades e mudanças na vida. Os elementos que induzem à capacidade do homem se adaptar as situações difíceis e ultrapassá-las começaram a ser foco de muitas pesquisas.
Para entendermos melhor o conceito e não cair em reducionismos na tentativa de explicar brevemente o assunto, teremos que considerar que há uma multiplicidade de fatores e variáveis que envolvem o fenômeno da resiliência no ser humano. Nesse campo nada é tão taxativo e padronizado, o próprio conceito induz a idéia de flexibilidade do sujeito ou da matéria frente à pressão sofrida pelo meio.

Colocando o foco sobre o universo missionário, temos em voga uma discussão de alta importância, tendo em vista que o próprio estilo de vida daqueles que são chamados para esta tarefa, já reúne desafios como: instabilidades diversas, perigos de perseguição, doenças e de morte, preconceitos religiosos e raciais, distanciamento geográfico da família e amigos, privações, entre outros elementos.
Vamos, então, refletir sobre o assunto a partir desses cinco pontos:

O que não é Resiliência?
  1. Resiliência não é um atributo fixo e inerente ao ser humano, que a despeito de qualquer coisa funciona como um gatilho pronto a ser disparado diante de adversidades que se apresentem. Se assim interpretarmos, quando esse gatilho não disparar, passaremos a deduzir: esta pessoa não nasceu para ser resiliente, é frágil, ”tadinha”. Também não está ligado ou dependente do temperamento humano. A verdade é que haverá sempre uma variação na resposta que o indivíduo é capaz de fornecer, que depende de muitas variáveis internas e externas, tais como, o ambiente, a circunstância, o meio social, e principalmente, o modo como o sujeito se relaciona com tudo isso.

  1. Resiliência é diferente de Invunerabilidade. Enquanto a primeira se aplica a um fenômeno dinâmico, a segunda reflete a idéia rígida de invencibilidade, como se o humano pudesse ser inatingível. A habilidade de superar crises não implica em inatingibilidade. Depois de enfrentar grandes mudanças, adversidades ou tragédias, as dores e a marcas na alma são inevitáveis. Não há como sair intacto dessa vida. Somos seres vulneráveis e totalmente afetáveis. Mas mesmo assim, podemos ser resilientes.

O que é Resiliência, então?

  1. Resiliência diz respeito ao modo como me relaciono com as pessoas. Em situações em que nos vemos no nosso limite, reconhecer que os outros podem ser fontes de apoio e segurança pode contribuir no desenvolvimento de um ser resiliente. Não se é resiliente sozinho. Porém, buscar apoio no outro não significa lançar sobre ele(a) uma responsabilidade que é totalmente minha, de enfrentar as adversidades e superá-las. Os outros podem servir como apoio, mas não são responsáveis diretos pela nossa infelicidade e não deveriam ser culpabilizados por isso. Enxergar as pessoas como bênçãos ao meu favor e não ao meu serviço, faz muita diferença.

  1. Resiliência tem a ver com o modo como interpreto a vida. Um modo não realístico ignora ou supervaloriza os acontecimentos.  Olhar a vida de frente significa interpretar os acontecimentos dentro das dimensões em que se apresentam. Outro erro é encarar a vida de um modo negativista. Isto impede a criatividade de fluir naturalmente, fecha as portas da superação e veda os olhos para a luz no fim do túnel. Então, ser realístico, criativo e positivo pode abrir possibilidades para atitudes de resiliência.

  1. Finalmente, Resiliência está ligada ao modo como vivencio a temporalidade da vida: Passado, Presente e Futuro.  Algumas pessoas ancoram no passado e colecionam tragédias, para terem o que contar. Então, sentar perto de alguém assim pode ser um convite para ouvir quão sofrida e traumatizada é essa pobre criatura. Normalmente saímos desse tipo de encontro cheios de pena ou cheios de raiva por ver alguém imbuído de autocomiseração e autocentrismo. Sim, de fato a vida é uma coletânea de acontecimentos bons e ruins. Se a tendência for de eternizar os acontecimentos ruins ou mesmo os bons que aconteceram no passado, corremos o risco de estar vivendo defeituosamente o presente e produzindo um futuro sem grandes mudanças e expectativas de crescimento. Se eu desejo mais a memória da tragédia do que a possibilidade da superação, para atrair a comoção do mundo, não há chance para um caráter resiliente, nesse caso.

Podemos, enfim, dizer que resiliência é um fenômeno dinâmico que pode ser desenvolvido e implica numa relação afetiva, social e cultural do homem com o mundo. É também uma construção que continuamente se dá através do aprendizado formal e informal durante toda a vida do sujeito. Você pode ser Resiliente no desempenho da Missão!

(...)
A resiliência é a arte de navegar nas torrentes.
Um trauma empurrou um sujeito em uma direção que ele gostaria de não tomar. Mas,
uma vez que caiu numa correnteza que o faz rolar e o carrega para uma cascata de ferimentos,
o resiliente deve apelar aos recursos internos impregnados em sua memória,
 deve brigar para não se deixar arrastar pela inclinação natural dos traumatismos que o fazem navegar aos trambolhões,
de golpe em golpe, até o momento em que uma mão estendida lhe ofereça um recurso externo,
uma relação afetiva, (...) que lhe permita a superação.
(Cyrulnik, 2004,p. 207)







Bibliografia Consultada:

Cyrulnik, B. Os patinhos feios. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

O`Donnell, Kelly. Cuidado Integral do Missionário: Perspectivas e práticas ao redor do mundo. Londrina: Descoberta, 2004.

O´Donnell, Kelly and  Prins, Marina. Global Member Care Resources (MemCa): Member Care Flows – Africa.  Nairobi, Kenya: Mission Comission, World Evangelical Alliance, 2006.

SEQUEIRA, Vânia Conselheiro. Resiliência e abrigos. Bol. - Acad. Paul. Psicologia, São Paulo, v. 29, n. 1, jun. 2009.

YUNES, Maria Ângela Mattar. Psicologia Positiva e Resiliência: O foco no indivíduo e na família. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 8, num. esp., p. 75-84, 2003

WALSH, F.  Strengthening family resilience. New York; London: The Guilford Press, 1998.